Resumo Executivo
Os debates sobre tecnologia no século XXI tendem a replicar a narrativa global predominante responsável por enquadrar a tecnologia como uma força universalmente aplicável. A tecnodiversidade, uma escola de pensamento emergente, desafia esse estado de coisas. Ela oferece uma perspectiva concorrente que vincula o destino do desenvolvimento e implementação tecnológica aos diversos contextos socioculturais dos quais ela emerge, em vez de uma “história universal” que abranja todas as coisas. Isso traz implicações significativas para os atuais esforços regulatórios. Podemos tomar como exemplo a Lei de IA na União Europeia e os debates acerca da regulamentação de plataformas digitais no Brasil para, juntamente com outros objetivos, mitigar seus potenciais efeitos negativos sobre o estado de direito.
Com isso em mente, este white paper se concentrará em dois exemplos principais. Primeiramente, como a regulamentação da IA pode se beneficiar de uma compreensão ampliada da “inteligência”¹ e, assim, romper com o discurso apocalíptico ao redor de uma “singularidade da IA”. Em segundo lugar, como nossa compreensão da relação entre tecnologia e democracia pode ser enriquecida pela avaliação crítica dos fundamentos epistemológicos nos quais tanto a IA quanto as redes de mídia social estão fundamentadas. Isso constitui um passo em direção a uma configuração mais sistemática e prática que possa reformular os debates contemporâneos, especialmente sobre política tecnológica, com foco em tecnodiversidade. De forma geral, este white paper convoca a fundação de uma aliança global e multissetorial para defender a causa da tecnodiversidade, desafiando o desenvolvimento tecnológico atual e fomentando a imaginação de outras formas de pensamento e desenvolvimento tecnológico.
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1. Desafiando o estado atual de desenvolvimento tecnológico defendido pela escola de pensamento representada pela sigla “TESCREAL”, tal como cunhada por Émile Torres e Timnit Gebru e que significa “Transumanismo, Extropianismo, Singularitarismo, Cosmismo, Racionalismo, Altruísmo Eficaz, e Longtermismo”.
Introdução: O Conceito de Tecnodiversidade
O conceito de tecnodiversidade tal como elaborado pelo filósofo Yuk Hui oferece um arcabouço crítico para analisar o discurso predominante em torno das tecnologias digitais e suas ramificações globais. O trabalho de Hui desafia a noção dominante de uma “história universal” que consistentemente retrata a tecnologia como uma força monolítica e universalmente aplicável, divorciada de contextos culturais ou históricos significativos.
Por outro lado, a perspectiva pioneira de Hui sublinha a necessidade de uma mudança de paradigma que reimagine a tecnologia como algo intrinsecamente vinculado aos diversos contextos culturais, sociais e históricos dos quais ela própria emerge, e nos permita refletir sobre futuros tecnológicos diversos e decoloniais. No cerne do pensamento de Hui está a ideia de que a tecnologia não é uma entidade uniforme ou universalmente aplicável, mas sim uma construção multifacetada profundamente enraizada nos valores e experiências de localidades distintas.
Trilhando o percurso filosófico de Hui, este projeto destaca que a tecnodiversidade amplia e igualmente aprofunda nossa visão, afastando-se das narrativas reducionistas e deterministas que têm dominado o debate em torno da tecnologia. Em vez das grandes narrativas universais da “era da IA” ou da iminente “singularidade da IA”, por exemplo, a tecnodiversidade nos obriga a explorar as manifestações intrincadas e específicas do contexto da tecnologia em diferentes regiões e histórias e a imaginar futuros que não sejam informados por um determinismo tecnológico ingênuo. Essa mudança nos leva a reconhecer a riqueza dos ecossistemas tecnológicos conforme eles se manifestam em cenários culturais, geográficos e históricos diversos.
A tecnodiversidade sugere um princípio fundamental que promova uma compreensão mais profunda da tecnologia e de suas implicações em nosso mundo interconectado e digital. Ela nos convida a considerar a interação complexa e concreta entre sistemas de conhecimento locais, práticas culturais e inovações tecnológicas, os quais não devem ser subordinados à mera eficiência e aos valores econômicos.
Podemos ilustrar essa ideia a partir de um exemplo do domínio da tecnologia médica. No contexto da tecnodiversidade, o foco muda de uma visão singular do papel da IA na medicina e seu complexo epistemológico unificado para uma análise matizada de como a IA é aplicada e integrada em práticas médicas em diferentes partes do mundo, levando em consideração, por exemplo, a distinção entre a medicina chinesa e as técnicas e instrumentos médicos ocidentais. As diferenças epistemológicas rejeitam sua redução a um conhecimento homogêneo pertencente a uma única história.
A tecnodiversidade oferece um arcabouço para valorizar a multiplicidade de perspectivas e práticas que sustentam o desenvolvimento tecnológico, permitindo uma abordagem mais inclusiva, equitativa e culturalmente sensível ao design, implementação e regulamentação da tecnologia em escala global. Ao reconhecer a importância da tecnodiversidade, podemos abrir caminho para um discurso mais inclusivo e contextualizado do papel da tecnologia ao redor do globo.
Por exemplo, reformular a discussão sobre políticas e regulamentações de IA a partir das lentes da tecnodiversidade significa abandonar a visão binária que categoriza a tecnologia como universalmente benéfica ou universalmente má. Essa nova abordagem encoraja um debate mais matizado e multifacetado, que ultrapasse a busca enganosa por soluções tecnológicas (ou mesmo regulatórias) universais. Em vez disso, ela reconhece as diversas cosmotécnicas em jogo e destaca a multidão de soluções tecnológicas que possam ser dependentes do contexto e moldadas por uma pluralidade de valores, experiências e influências culturais locais.
Essencialmente, a tecnodiversidade demanda uma reformulação dos debates acerca da tecnologia no século XXI, seja a partir da perspectiva técnica ou regulatória. Isso é especialmente urgente quando se considera que estamos no processo de discutir e implementar novas estruturas normativas para tecnologias emergentes em todo o mundo, as quais impactarão consideravelmente nossas experiências digitais compartilhadas.
Uma abordagem exclusivamente ocidental ou universalista para questões urgentes relacionadas à tecnologia, tais como o dilema da “caixa-preta da IA” ou os impactos negativos das redes sociais na democracia, muitas vezes pode levar a um impasse filosófico devido às limitações colocadas pela visão binária mencionada anteriormente. É fundamental reconhecer que tais desafios transcendem fronteiras geográficas e exigem uma perspectiva mais abrangente.
A tecnodiversidade, por outro lado, abraça a diversidade intrínseca dos sistemas tecnológicos e nos incentiva a abordar essas questões com um foco na localidade. Assim como as discussões sobre biodiversidade enfatizam a variedade de formas de vida, a tecnodiversidade nos lembra de refletir sobre os desafios tecnológicos a partir das localidades e dos recursos culturais, os quais podem oferecer soluções novas e inovadoras para aquilo que, de outra forma, poderia ser percebido como obstáculos intransponíveis.
A importância de abraçar a tecnodiversidade assume um papel central na busca pelo desenvolvimento humano e pela realização dentro do marco do Antropoceno². Essa era é marcada pelo profundo impacto da humanidade sobre a Terra, e, à medida que nossa dependência da tecnologia se aprofunda nos contextos social, político e econômico, torna-se imperativo manter a vigilância sobre sua interação com um pilar da nossa experiência humana compartilhada: a diversidade.
Em um mundo cada vez mais interconectado, modalidades diversas de pensamento ou racionalidade, muitas vezes referidas como “noodiversity” (“nodiversidade”), estão mais intrinsecamente entrelaçadas do que nunca com o conceito de tecnodiversidade. Essa intrincada rede de relações é responsável por nutrir a biodiversidade em escala global, dando forma ao próprio tecido de nossa existência. No entanto, dentro das correntes incessantes da competição tecnológica e do surgimento de novas narrativas geopolíticas, encontramos a ameaça iminente de uma perigosa homogeneização, que pode vir a comprometer o rico mosaico de diversificação que historicamente tem caracterizado nosso mundo. Com efeito, Como Yuk Hui apropriadamente sugere, uma solução possível reside na busca pela “reconciliação por meio da diversificação”³.
Mesmo assim, embora as contribuições de Hui sejam significativas, é fundamental reconhecer que uma comunidade crescente de acadêmicos e pensadores tem contribuído ativamente para esse debate crucial. Eles não apenas expandem os esforços filosóficos de Hui, mas também se aprofundam nas implicações práticas da tecnodiversidade, especialmente a partir de uma perspectiva geopolítica. Uma dessas vozes notáveis é Domenico Fiormonte, que postula que a tecnodiversidade é uma das chaves para a descolonização digital⁴. Em seu ponto de vista, o exercício da escolha carrega um peso significativo em contextos culturais em que este possa implicar a rejeição da tecnologia percebida como invasiva ou prejudicial. A perspectiva de Fiormonte ressalta que a tecnodiversidade atua como guardiã da autodeterminação do “corpus digital”, defendendo soluções que honrem a diversidade ecológica, cultural e linguística dos diferentes territórios e de suas populações. Essa perspectiva ampliada enriquece o debate atualmente em andamento, abrangendo não apenas a base filosófica estabelecida por Hui, mas também as implicações críticas de preservar a autonomia cultural e territorial dentro de um cenário tecnológico em constante evolução.
Seguindo a discussão sobre tecnodiversidade, este white paper (livro branco) considerará brevemente dois debates fundamentais que podem ser amplamente enriquecidos por essa mudança filosófica: a erosão da democracia e o surgimento de novas tecnologias impulsionadas pela Inteligência Artificial. Nosso objetivo não é defender que esses dois debates são os mais importantes, mas sim ilustrar como é possível aplicar o conceito de tecnodiversidade e, consequentemente, oferecer novas alternativas aos desafios que enfrentamos agora. Em outras palavras, nosso objetivo é avançar uma compreensão aprimorada do que a tecnodiversidade representa e de suas principais aplicações práticas em um cenário global em constante mudança, em que os avanços tecnológicos são frequentemente percebidos como “universais” e “necessários”, ignorando, portanto, o verdadeiro significado da democracia.
Além disso, cremos pertinente criar um movimento baseado nas firmes fundações filosóficas estabelecidas por Yuk Hui, Domenico Fiermonte e outros pensadores. Ao priorizar a construção de comunidades, acreditamos que é de suma importância capacitar uma rede global de indivíduos e organizações dedicados a defender a causa da tecnodiversidade, promovendo assim um futuro tecnológico mais equitativo, culturalmente sensível e diversificado.
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2. HUI, Yuk. Rethinking technodiversity. The UNESCO Courier, publicado em 31 de março de 2021. Disponível em: <https://courier.unesco.org/en/articles/rethinking-technodiversity>.
3. Ibidem.
4.FIORMONTE, Domenico. Technodiversity as the key to digital decolonization. The UNESCO Courier, publicado em 31 de março de 2021. Disponível em: <https://courier.unesco.org/en/articles/technodiversity-key-digital-decolonization>.
Tecnodiversidade e Inteligência Artificial
O advento da Inteligência Artificial (IA) tem sido caracterizado por marcos históricos significativos que têm moldado a forma como percebemos e interagimos com a tecnologia. Um dos momentos cruciais no desenvolvimento inicial da IA ocorreu em 1950 com a publicação do artigo de Alan Turing “Computing Machinery and Intelligence”. Neste trabalho marcante, Turing articulou em termos acadêmicos o conceito de uma máquina que poderia simular a inteligência humana. Ele propôs o que agora é conhecido como Teste de Turing, uma medida da capacidade de uma máquina de imitar o comportamento inteligente indistinguível daquele de um ser humano.⁵ Este artigo estabeleceu parte da base filosófica moderna para os estudos e desenvolvimento de IA ao levantar questões sobre a natureza do pensamento humano e o potencial das máquinas para replicá-lo, preparando o terreno para a condução de pesquisas e explorações subsequentes.
Outro momento crucial na história da IA foi a Conferência do Dartmouth College em 1956, frequentemente referida como o nascimento da IA como uma disciplina formal. Naquela conferência, pioneiros no campo, incluindo John McCarthy e Marvin Minsky, se reuniram para discutir a possibilidade de criar máquinas que pudessem executar tarefas que exigissem inteligência e racionalidade humanas. Um ano antes, em uma proposta formal para a conferência apresentada ao Dartmouth College, McCarthy, Minsky e outros declararam que estavam construindo sobre “a conjectura de que todo aspecto do aprendizado ou qualquer outra característica da inteligência podem, em princípio, ser descritos com tanta precisão que uma máquina pode ser criada para simulá-los”⁶. Eles acreditavam que a IA poderia resolver problemas complexos como tradução de idiomas e reconhecimento de padrões, e estabeleceram metas ambiciosas para o campo. Embora o otimismo em Dartmouth fosse alto, a conferência marcou o início de um período de décadas de pesquisa e desenvolvimento até que o potencial da IA fosse concretizado.
Avançando para o ano de 2022, o lançamento global do ChatGPT consolidou mais um marco significativo na história da IA. O ChatGPT é um produto da revolução do aprendizado profundo (“deep learning”) no desenvolvimento de IA e um testamento dos incríveis avanços no processamento de linguagem natural baseado em algoritmos. Com seu lançamento, a IA deu um salto gigante em sua capacidade de se comportar como “entende” a linguagem natural e, portanto, gerar texto semelhante ao humano, facilitando as interações humano-máquina em um nível sem precedentes. Este momento ressalta o rápido – e às vezes descontrolado – desenvolvimento da IA e seu potencial para compreender uma parte significativa da complexidade da linguagem humana a partir de um ponto de vista computacional. Como também levanta importantes questões éticas e sociais sobre o uso responsável da IA e suas implicações para vários campos, desde as eleições até o mercado de trabalho.
Contra este pano de fundo significativo (embora historicamente recente), um debate importante sobre a regulamentação da IA ganhou impulso. Tomemos como exemplo a Lei de AI aprovada pelo Parlamento da União Europeia em 2023 e que agora está passando por uma rodada final de negociações. A regulamentação se concentra nas possíveis externalidades negativas da tecnologia e situa a IA em um espectro que varia de “baixo risco” a “risco inaceitável”. Este arcabouço regulatório deve se tornar muito influente em todo o mundo, seguindo o já conhecido “Efeito Bruxelas”⁷, que também pode ser identificado no campo da privacidade e proteção de dados e regulamentação de plataformas. Por exemplo, o Projeto de Lei No. 2.338/2023 do Brasil foi fortemente influenciado pelo debate europeu e também adota uma abordagem baseada em risco em vez de propor uma regulamentação da tecnologia em si. Além disso, os Estados Unidos também se juntaram à conversa em 2023, quando o Presidente Biden emitiu uma inovadora “Ordem Administrativa para uma Inteligência Artificial Segura, Confiável e Digna de Confiança”, abrindo caminho para um arcabouço mais equilibrado no desenvolvimento e aplicação de IA.
No entanto, o conceito de tecnodiversidade desafia algumas das noções preconcebidas nas quais tais debates se baseiam. Como afirma Yuk Hui, nós devemos “libertar a inteligência artificial do viés associado a certas noções de inteligência” para que possamos ser livres “para conceber novas ecologias políticas e economias políticas da inteligência de máquina”⁸. Para o autor, a narrativa predominante sobre o desenvolvimento da IA – apresentada brevemente acima – lança uma sombra sobre a “ruptura epistemológica” entre uma forma linear de raciocínio e a recursividade, que está na base de novas teorias como a cibernética e a teoria dos sistemas. Hui argumenta que “a forma recursiva permite que os algoritmos absorvam efetivamente as contingências visando melhorar a eficiência computacional”.⁹ Em outras palavras, uma forma recursiva de raciocínio permite que a máquina derive suas regras da experiência em vez de depender exclusivamente das regras estipuladas por seu programador. As tecnologias modernas baseadas em IA são capazes, portanto, de raciocínio não linear, o que as diferencia de um pensamento mecanicista clássico e as aproxima do comportamento dos organismos. Ultrapassando o “autômato sem alma” denunciado por René Descartes, “a causalidade circular [...] parece sugerir um movimento análogo ao da alma: a alma é aquilo que retorna a si mesma para se determinar [a si mesma]”.¹⁰
Embora o desenvolvimento da IA tenha se movido nas últimas décadas de um racionalismo cartesiano estrito (como o filósofo Hubert Dreyfus vem criticando incessantemente desde a década de 1960) para um empirismo que conecta decisões a análises baseadas em fatos, do qual o conexionismo tem sido um paradigma, ele enfraquece a diversidade de inteligências e suas relações complexas com o mundo.¹¹ Nas palavras de Hui, parafraseando Heidegger, “o mundo é constituído por uma totalidade complexa de referências, e a cognição depende dessas referências para raciocinar”.¹² Apesar de observar o poder crescente da IA, não devemos perder de vista como o próprio mundo está mudando, afastando-se de uma realidade fenomenológica rica e complexa, devido a um processo acelerado de digitalização, em direção a um mundo cada vez mais determinado por dados e cálculos matemáticos. Estamos falando, portanto, de uma inteligência computável (ou recursivamente enumerável), que, como Hui apropriadamente reconhece, “é apenas um tipo de inteligência entre muitas outras”.¹³
O próprio conceito de tecnodiversidade, tal como mencionado anteriormente, está intimamente relacionado ao conceito de nodiversidade, que, por sua vez, se refere à diversidade de raciocínio ou pensamento. Trata-se, portanto, de um chamado a problematizar e reconceitualizar a própria ideia de inteligência embutida no campo da Inteligência Artificial como um todo. Tomemos como exemplo a maneira pela qual a filosofia chinesa atribui inteligência a uma intuição intelectual, ao passo que os filósofos ocidentais tendem a rejeitar essa afirmação.¹⁴ Yuk Hui, à luz dessa análise, sugere que devemos ampliar nossa compreensão da inteligência de duas maneiras para que possamos, por sua vez, ampliar nossa compreensão sobre como a tecnologia funciona. Primeiramente, a inteligência não deve ser limitada à calculabilidade, tal como ela é atualmente considerada e pressuposta no âmbito da competição por poder computacional. Em vez disso, ela deve abranger aquilo que é incalculável, intrínseco a todas as vidas espirituais, como ponto de partida. Em segundo lugar, a inteligência não deve ser reduzida a um modelo universal homogêneo, que atualmente leva à busca por uma superinteligência universal. Em vez disso, como afirma Hui, a IA deve ser informada pelo objetivo de facilitar e não dificultar a nodiversidade, o que, por sua vez, promove a tecnodiversidade e a biodiversidade. ¹⁵
De forma geral, isso significa que não devemos focar nossos esforços na busca por uma IA universal impulsionada pela velocidade e pela eficiência. Em vez disso, a IA precisa ser avaliada do ponto de vista de uma concepção ampliada de inteligência ao lado de vários e diversos modos de raciocínio ou pensamento, ou seja, de nodiversidade. É esse reconhecimento que nos levará a considerar caminhos alternativos e, além disso, meditar sobre as possibilidades de uma IA que ultrapasse uma superinteligência universal (ou ainda, sobre como evitar que essa ilusão nos leve ao abismo). Essa reflexão deve incluir uma discussão sobre a diversidade de inteligências, o desenvolvimento de algoritmos que alimentam soluções baseadas em IA e a implementação e aplicação de ferramentas de IA em circunstâncias diversas.
Com efeito, esse empreendimento universalista nos distrai de um debate mais frutífero sobre como a IA pode avançar, em vez de prejudicar, a tecnodiversidade e como isso, por sua vez, pode impactar positivamente o desenvolvimento da nodiversidade e da biodiversidade. Sendo assim, legisladores e formuladores de políticas ao redor do mundo devem considerar a tecnodiversidade como um elemento central ao elaborar e implementar novas estruturas normativas para IA, contribuindo para a criação de um futuro tecnológico mais diverso em vez de monolítico. Isso significa explorar outros caminhos além da narrativa predominante, que se baseia em uma abordagem universal (e, portanto, questionável) para a tecnologia.
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5. Não devemos ignorar, porém, a questão de gênero subjacente à proposta de Turing. De acordo com sua versão do teste, um interrogador humano faz perguntas a dois participantes em outra sala para determinar se ele está interagindo com um homem ou uma mulher. Ambos tentam confundir o interrogador e convencê-lo de que ele está interagindo com o outro participante, e é por isso que Turing também se refere a ele como “Jogo da Imitação”. Assim, a ideia é substituir um dos jogadores por um computador para verificar se o interrogador é capaz de ser enganado na mesma proporção de quando apenas humanos estavam jogando.
6. DICK, Stephanie. Artificial Intelligence. Harvard Data Science Review, 1 de julho de 2019. Disponível em: <https://hdsr.mitpress.mit.edu/pub/0aytgrau/release/3>.
7. BRADFORD, Anu. The Brussels Effect: How the European Union rules the world. Oxford: Oxford University Press, 2020.
8. HUI, Yuk. On the Limit of Artificial Intelligence. Philosophy Today, v. 65, i. 2, 2021, p. 341.
9. Ibidem, p. 343.
10. Ibidem, p. 344
11. Ibidem, pp. 345-46.
12. Ibidem, p. 347.
13. Ibidem, p. 349.
14. Ibidem, pp. 351-54
15. Ibidem, p. 354.
Tecnodiversidade e Democracia
A importância da democracia e do estado de direito em nossa sociedade não pode ser subestimada, pois estes servem como princípios fundamentais que sustentam os direitos civis, as liberdades e a governança. Contudo, em anos recentes, o surgimento de novas tecnologias digitais, particularmente a inteligência artificial e as redes sociais, tem desafiado não apenas as práticas democráticas em geral, mas também conceitos intimamente relacionados à democracia, tais como a esfera pública, a liberdade de expressão, etc. Essas tecnologias têm impactado significativamente nosso cenário democrático, criando confusão e, ao mesmo tempo, trazendo à tona novas oportunidades que exigem nossa atenção e reflexão crítica.
Um dos aspectos preocupantes da era digital é o conceito de erosão democrática, um fenômeno a partir do qual os princípios e normas democráticas enfrentam um declínio constante e às vezes imperceptível ao longo do tempo. A erosão democrática, em contraste com o colapso democrático, torna difícil para nós, enquanto sociedade, identificar um ponto de virada único. Ou, como argumenta a cientista política Nancy Bermeo, “as democracias agora têm mais probabilidade de se erodirem do que de se despedaçarem”.¹⁶ As redes sociais têm desempenhado um papel fundamental em facilitar a propagação da desinformação, a polarização do discurso político e a erosão da confiança nas instituições democráticas. A rápida disseminação de informações falsas e o efeito das “câmaras de eco” nas redes sociais podem influenciar a opinião pública e até influenciar resultados eleitorais. Ao mesmo tempo, a inteligência artificial tem amplificado tais preocupações ao automatizar a propagação de conteúdos enganosos, tornando potencialmente ainda mais difícil identificar e combater a desinformação.
Por outro lado, as redes sociais e a inteligência artificial também possuem potencial para aprimorar a democracia, promovendo a transparência, o envolvimento dos cidadãos e a responsabilização. Afinal, novas tecnologias podem ser usadas como instrumentos ou armas positivas, dependendo de como são construídas, quem as controla e para quais objetivos são empregadas. Elas poderiam permitir que os indivíduos participassem no discurso público, mobilizassem-se para causas sociais e políticas e acessassem informações com mais facilidade do que nunca. Em contextos eleitorais, por exemplo, as redes sociais e a IA podem servir como ferramentas poderosas para que as campanhas políticas alcancem um público mais amplo e se conectem com os eleitores. A tecnologia, portanto, também pode atuar a favor da democracia e ser implementada de formas que fortaleça, em vez de prejudicar, o estado de direito.
Portanto, o desafio reside em encontrar um equilíbrio entre os benefícios destas tecnologias digitais e seu potencial prejudicial. Para salvaguardar a democracia e o estado de direito, é imperativo desenvolver mecanismos robustos para verificação de fatos, promover o letramento digital e implementar regulamentações que promovam usos éticos e responsáveis de novas tecnologias. O impacto das tecnologias emergentes sobre a democracia tem sido um tema de debate contínuo, em constante evolução, que exige nossa atenção permanente, além de esforços conjuntos para assegurar que, ao fim e ao cabo, elas trabalhem a favor de valores e instituições democráticos.
A tecnodiversidade também deve ser entendida como uma pedra fundamental para ancorar esse esforço. É paradoxal lutar pela democracia em plataformas que não foram construídas para facilitá-la, sem perceber que o caminho para a resiliência democrática envolve reimaginar e redesenhar a tecnologia da qual atualmente dependemos. Os desafios impostos pelas tecnologias digitais à nossa prática habitual de democracia nos convidam a retomar o conceito de democracia e a refletir sobre sua radicalidade. A prática democrática depende de seu meio, ao passo que a democracia como conceito também resiste à determinação de seu meio. A discussão sobre democracia será inútil caso não incorpore também a agenda da tecnodiversidade. Frequentemente caímos na armadilha do que Yuk Hui chama de “cultura monotecnológica”, em que aceitamos ingenuamente a tecnologia industrial como uma força inevitável e universal e, consequentemente, nos rendemos a esta força que enfraquece a diversidade, levando à sincronização de nossas experiências humanas compartilhadas na nova fronteira digital. ¹⁷
Ao questionarmos a abordagem universalista predominante no campo da tecnologia, podemos explorar como diferentes cosmotécnicas podem levar a caminhos distintos e, assim, a soluções para nosso atual impasse. Debater maneiras de tornar as plataformas de mídia social dominantes mais “democráticas”, por exemplo, é necessário, mas insuficiente, pois, ao se tornarem meros consumidores de tecnologia, os cidadãos “têm que se adaptar a novas interfaces e novos algoritmos sobre os quais não têm qualquer controle ou influência”. ¹⁸ Em vez de focar na propriedade em si, como o movimento do software livre insistiria, deveríamos focar no terreno epistemológico sobre o qual essas tecnologias são construídas. Ou, como argumenta Hui, o foco deve recair tanto sobre a construção democrática de tecnologias como a construção de tecnologias democráticas.¹⁹
Toda tecnologia carrega suposições epistemológicas específicas que são ofuscadas pela percepção comum (e enganosa) de que ela é universal. Ao trilharmos o caminho prescrito pela tecnodiversidade, somos convidados a considerar como outras formas de conhecimento – incluindo o conhecimento indígena ou não-moderno – podem ser incorporadas no desenvolvimento e na aplicação de novas tecnologias digitais. Isso inclui o funcionamento interno das plataformas de mídia social dominantes, que baseiam suas operações em suposições específicas de como as interações sociais funcionam e, portanto, como uma comunidade digital deve ser estruturada. Isso frequentemente faz com que o foco recaia sobre o indivíduo, que é visto como o bloco de construção fundamental de uma rede social. No entanto, como demonstra Hui, também podemos imaginar “uma rede social baseada em coletivos em vez de indivíduos, o que poderia servir como um exemplo de como implementar a tecnodiversidade”.²⁰
A abordagem universalista termina por criar uma gaiola imaginária (embora consequente) ao redor dos debates a respeito de tecnologia, tanto no campo da democracia como nas próprias instituições democráticas. Caso o design dominante das plataformas de mídia social ou IA não sirva aos interesses da democracia, então estamos condenados a tentar consertá-lo dentro dos limites do paradigma atual ou a arcar com as consequências de nosso fracasso. Inversamente, a tecnodiversidade nos convida a conceber futuros alternativos com base em bases epistemológicas diferentes. As redes sociais e a IA não são universais. Elas podem (e devem) ser reconceitualizadas quando necessário, trabalhando em conjunto com o conceito de nodiversidade.
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16. BERMEO, Nancy. On Democratic Backsliding. Journal of Democracy, v. 27, n. 1, 2016, 5-19.
17. HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020, pp. 89-96.
18. HUI, Yuk. Democracy and Technodiversity. Unpublished manuscript, 2023, p. 05.
19. Ibidem, p. 05.
20. Ibidem, p. 08.
Conclusão abrindo caminhos para uma nova aliança
Quando concentramos todos os nossos esforços e atenção na regulação de novas tecnologias sem considerarmos a tecnodiversidade devidamente, a abordagem universal descrita acima torna-se uma perigosa profecia autorrealizável. A atual concorrência global baseada nessa concepção de tecnologia não é apenas perigosa, mas também desastrosa. É hora de interrompermos esse ciclo e convocamos as partes interessadas e os formuladores de políticas públicas a reconsiderarem as premissas nas quais as discussões atuais estão fundamentadas. Isso se torna ainda mais urgente neste momento em que os debates políticos têm ganhado tração e uma intrincada rede de regulamentações tem emergido nos níveis nacional, internacional e transnacional. A filosofia da tecnodiversidade nos oferta conhecimentos inestimáveis que podem ser adaptados na forma de um roteiro que promova uma aliança global empenhada em reformular os debates a respeito de políticas para o século XXI.
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